terça-feira, 3 de maio de 2011

JOANA DE CUZA

JOANA DE CUZA

“E aconteceu que andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o Evangelho do Reino de Deus, e os doze iam com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena e Joana, mulher de Cuza e muitas outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens.”
( Lucas, 8- 1 a 3)

= x =

Entre a multidão que invariavelmente acompanhava a Jesus nas pregações do lago, achava-se sempre uma mulher de rara dedicação e nobre caráter, das mais altamente colocadas na sociedade de Cafarnaum. Tratava-se de Joana, consorte de Cuza, intendente de Antipas, na cidade onde se conjugavam interesses vitais de comerciantes e pescadores.

Joana possuía verdadeira fé; contudo não conseguia se livrar das amarguras domésticas, porque seu companheiro de lutas não aceitava as claridades do Evangelho. Considerando seus dissabores íntimos, a nobre senhora procurou o Messias, numa ocasião em que ele descansava em casa de Simão Pedro, e lhe expôs a longa série de suas contrariedades e padecimentos. O seu esposo não tolerava a doutrina do Mestre, porque, sendo alto funcionário de Herodes, em constantes contatos com os representantes do império, repartia as suas preferências religiosas, ora com os interesses da comunidade judaica, ora com os deuses romanos, o que lhe permitia viver em tranqüilidade fácil e rendosa. Joana confessou ao Mestre os seus temores, suas lutas e desgostos no ambiente doméstico, expondo suas amarguras em face das divergências religiosas existentes entre ela e o companheiro.

Após ouvir-lhe a longa exposição, Jesus lhe respondeu: “Joana, só há um Deus, que é Nosso Pai, e só existe uma fé para as nossas relações com o seu amor. Certas manifestações, no mundo, muitas vezes não passam de vícios populares nos hábitos exteriores. Todos os templos da Terra são de pedra; eu venho, em nome de Deus, abrir o templo da fé viva no coração dos seres humanos. Entre o sincero discípulo do Evangelho e os erros milenares do mundo, começa a travar-se o combate sem sangue, da redenção espiritual. Agradece ao Pai o haver-te julgada digna do bom trabalho, desde agora. Teu esposo não te compreende a alma sensível? Compreender-te-á um dia. É leviano e indiferente? Ama-o assim mesmo. Não te acharias ligada a ele se não houvesse para isso razão justa. Servindo-o com amorosa dedicação, estarás cumprindo a vontade de Deus. Falas-me de teus receios e de tuas dúvidas; deves, pelo Evangelho, amá-lo ainda mais. Os são não precisam de médico. Além disso, não poderemos colher uvas nos abrolhos, mas podemos modificar o solo que produziu cardos envenenados, a fim de cultivarmos nele mesmo a videira maravilhosa do amor e da vida”.
Joana deixava entrever no brilho dos olhos a íntima satisfação que aqueles esclarecimentos lhe causavam; mas, mostrando todo seu estado d’alma, interrogou: “Mestre, vossa palavra me alivia o espírito atormentado; entretanto, sinto dificuldade extrema para um entendimento recíproco no ambiente do lar,. Não julgais acertado que lute por impor os vossos princípios? Agindo assim, não estarei reformando o meu esposo para o céu e para o vosso reino?”

Jesus sorriu serenamente e retrucou: “Quem sentirá mais dificuldades em estender as mãos fraternas; será o que atingiu as margens seguras do conhecimento com o Pai, ou aquele que ainda se debate entre as ondas da ignorância ou da desolação, da inconstância ou da indolência do espírito?” Continuou Jesus, acentuando a importância das suas palavras: “Quanto à imposição das idéias, por que motivo Deus não impõe a Sua Vontade e o Seu Amor aos tiramos da Terra? Por que não fulmina com um raio o conquistador desalmado que espalha a miséria e a destruição, com as forças sinistras da guerra?... A sabedoria celeste não extermina as paixões: Aquele que semeou o mundo de cadáveres desperta, às vezes, para Deus, apenas com uma lágrima e transforma-se. O Pai não impõe a reforma a seus filhos: esclarece-os no momento oportuno. Joana, o apóstolo do Evangelho é o de colaboração com o céu, nos grandes princípios da redenção. Sê fiel a Deus, amando o teu companheiro do mundo, como se fora teu filho. Não percas tempo em discutir o que não seja razoável. Deus não trava contendas com as suas criaturas e trabalha em silêncio por toda a Criação. Vai!... Esforça-te também no silêncio e, quando convocada ao esclarecimento, fala o verbo doce ou enérgico da salvação, segundo as circunstâncias! Volta ao lar e ama o teu companheiro como o material divino que o céu colocou em tuas mãos para que talhes uma obra de vida, sabedoria e amor!...”

Joana de Cuza experimentava agora um brando alívio no coração. Enviando á Jesus um olhar de carinhoso agradecimento, ainda ouviu-lhe as últimas palavras: “Vai filha!... Sê fiel a Deus!”

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Desde esse memorável dia, para a sua existência, a mulher de Cuza experimentou na alma a claridade constante de uma resignação, sempre pronta ao trabalho e sempre ativa para a compreensão de Deus. Era como se o ensinamento do Mestre estivesse agora gravado indelevelmente em sua alma, e considerou que, antes de ser esposa na Terra, já era filha daquele Pai que, do Céu, lhe conhecia a generosidade e os seus sacrifícios. Procurou esquecer todas as características inferiores do companheiro, para observar somente o que ele possuía de bom, desenvolvendo, nas menores oportunidades, o embrião vacilante de suas virtudes eternas. Mais tarde, o céu lhe enviou um filhinho, que veio duplicar os seus trabalhos; ela, porém, sem olvidar as recomendações de fidelidade que Jesus lhe havia feito, transformava suas dores nem hino de triunfo silencioso em cada dia. Seu espírito divisava em todos os lugares uma luz sagrada e oculta a lhe amparar.

Os anos passaram o esforço perseverante lhe multiplicou os bens da fé. Um dia,
ás perseguições políticas desabaram sobre a cabeça do seu companheiro. Torturado pelas idéias odiosas de vingança, pelas dívidas, pela vaidade ferida, pelas moléstias que lhe atingiram o corpo, o ex-integrante de Antipas voltou ao plano espiritual, numa noite de sombras tempestuosas. Joana, contudo, se mantinha firme; suportou os dissabores mais amargos, fiel aos seus ideais divinos edificados na confiança sincera. Premida pelas necessidades mais duras, a nobre dama de Cafarnaum procurou trabalho para se manter com o filhinho que Deus lhe confiara. Algumas amigas lhe chamaram a atenção, mas Joana buscou esclarecê-las, dizendo que Jesus igualmente havia trabalhado, calejando as mãos e que, ela se mantendo numa situação de subalternidade no mundo, de dedicara primeiro ao Mestre de quem já se havia feito escrava devotada.

Cheia de alegria sincera, a viúva de Cuza esqueceu o conforto da nobreza material, dedicando-se aos filhos de outras mães, ocupando-se com os mais subalternos afazes domésticos, para que seu filhinho tivesse o alimento. Mais tarde, quando a neve dos anos lhe alvejou os cabelos, ela foi presa como cristã, e conduzida a Roma, numa galera romana, juntamente com seu filho, na qualidade de serva. No ano 68, quando as perseguições ao Cristianismo iam intensas, vamos encontrar, num dos espetáculos sucessivos do circo romano, uma velha discípula do Senhor, amarrada ao poste do martírio, ao lado de um homem novo, que era seu filho.

Ante os apupos do povo, foram ordenadas as primeiras flagelações.–“Abjura!” – exclamava o executor das ordens imperiais, de olhar frio e cruel – A antiga discípula do Mestre contemplava o céu, sem uma palavra de negação ou queixa. Então o açoite foi aplicado sobre o rapaz seminu, que exclamou , entre lágrimas: “Repudia a Jesus, minha mãe!... Não vês que nos perdemos?! Abjura!... por mim que sou teu filho!...” – Pela primeira vez, dos olhos da mártir correm lágrimas abundantes. As rogativas do filho são espadas de sofrimento que lhe retalham o coração. – “Abjura! Abjura!...”

Joana ouve aqueles gritos, recordando a existência inteira. O lar risonho e feliz, as horas de ventura, os desgostos domésticos, seu filhinho querido, as emoções maternais, os fracassos do esposo, sua desesperação e sua morte, a viuvez, a desolação e as necessidades mais prementes... Em seguida, ante os apelos desesperados do seu filho, recordou que Maria também fora mãe e, vendo seu filho Jesus, crucificado no madeiro da infâmia, soubera conformar-se com os desígnios divinos. Acima de todas as recordações, como alegria suprema de sua existência, pareceu-lhe ouvir ainda o Mestre, em casa de Pedro, a lhe dizer: “Vai filha! Sê fiel a Deus!” – Então, possuída de força sobre-humana, a viúva de Cuza contemplou seu filho ensangüentado e, fixando no jovem um olhar profundo, na sua dor e na sua ternura, exclamou firmemente: “Cala-te meu filho! Jesus era puro e não desdenhou o sacrifício. Saibamos sofrer na hora dolorosa, porque, acima de todas as felicidades transitórias do mundo, é preciso ser fiel a Deus!”

A esse tempo, com os aplausos delirantes do povo, os verdugos incendiaram as achas de lenha embebidas em resinas inflamáveis, em derredor dos postes onde eles estavam amarrados. Em poucos instantes, as labaredas lamberam-lhes os corpos. Joana de Cuza contemplou com serenidade a massa do povo que não lhe entendia o sacrifício. Os gemidos de dor lhe morriam abafados no peito. Os algozes dos mártires cercaram-lhes de impropérios. Um dos verdugos disse a Joana: “O teu Jesus soube apenas ensinar-te a morrer?” – A velha discípula, reunindo as últimas resistências, teve ainda força para responder: “Não apenas a morrer, mas também a vos amar!...”

Nesse instante, ela faleceu... em seguida, sentiu que a mão consoladora do Mestre lhe tocava suavemente o ombro, e lhe escutou a voz carinhosa e inesquecível, dizer: “Joana, tem bom ânimo!.. Eu aqui estou!...”



Bibliografia:
Evangelho de Lucas
Livro “Boa Nova” – (Espírito de Humberto de Campos)

Jc.
S.Luis, 28/4/2011

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