domingo, 9 de abril de 2017

A JUSTIÇA NEGADA




 Uma juíza vendeu sentença a um traficante. Outra juíza manteve presa ilegalmente, uma menina de 15 anos, que foi brutalmente torturada pelos demais presos. Que punição elas receberam? Leia este artigo e apavore-se. Quando se fala de casos como os das juízas, a reação imediata dos defensores é:  “Mas por que falar disso agora? A quem interessa? O que está por trás?”
O CASO DA JUÍZA Olga Regina de Souza Santiago, do Tribunal de Justiça da Bahia, é de dar medo em qualquer brasileiro que imagina estar sob a proteção da lei. A juíza e a personagem central de uma história de negação absoluta de justiça – não se trata de injustiça, exatamente, mas de recusa do Estado em submeter um de seus agentes às leis  que valem  para o resto da população, prática que costuma ser encontrada apenas nos países mais totalitários do mundo. O que houve? Houve que a doutora Olga, em pleno exercício de sua função, recebeu dinheiro de um traficante de drogas colombiano como pagamento de propina para deixá-lo fora da cadeia – ela não foi, nem será punida por isso.
A juíza já vinha sendo investigada desde o distante 2007; agora, após quase dez anos de “processo disciplinar” e com todas as provas possíveis, de gravações de conversas a comprovantes de transferência bancária, o Conselho Nacional de Justiça declarou, enfim, que ela é culpada de corrupção passiva e outros crimes – e como única punição para isso deve se aposentar, com vencimentos integrais. O mais apavorante é que não houve nenhum favor especial para a doutora Olga, longe disso; apenas se aplicou o que a Justiça brasileira, desde 2005, considera ser a lei. É ou não para assustar?
Vamos falar as coisas como elas são: uma criança de 7 anos, ao ouvir uma história como essa, sabe que o final está errado. Como a Justiça pode decidir que alguém cometeu um crime e, exatamente ao mesmo tempo, não mandar para a cadeia quem praticou o crime?  Por mais respeito que se tenha pelos argumentos que tentam explicar tecnicamente a situação, quando apresentados pelos maiores cérebros jurídicos do país, está acima da moral comum,  entender que possa estar correto na recusa de aplicar as leis criminais a um cidadão pelo simples fato de que ele é um juiz de direito. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
Qualquer outra pessoa, tendo feito o que a juíza Olga fez, seria condenada a até doze anos de prisão, pena agravada de um terço, pelo Artigo 317 do Código Penal Brasileiro; mas o máximo de castigo que se aplica a ela é que, deixe de ser juíza ao mesmo tempo. E mais: continuará recebendo o salário inteiro, pelo resto da existência (no seu caso, não se sabe  exatamente  qual  será  o  custo  disso para  o  contribuinte, que não cometeu crime algum, mas pouco não vai ser; já podem ir contando com uns 40 mil reais por mês,  pelo menos).
O pior de tudo é que não se trata de uma exceção; essa é a regra, e, se a regra é essa, está claro que o aparelho da Justiça Brasileira parou de funcionar como um sistema lógico. Não pode existir lógica quando o CNJ, o órgão de controle mais elevado do Poder Judiciário, aceita tomar decisões dementes. O resto, para 99%  dos seres humanos normais, brasileiros, é pura tapeação – de novo, com todo respeito. Quantos magistrados brasileiros estariam dispostos a admitir que existe alguma coisa insuportavelmente errada num sistema em que acontecem fatos como esse? O que temos aqui é uma tragédia permanente.
O CASO DA JUÍZA Clarice. Quase um mês antes da decisão sobre a juíza Olga Santiago, o mesmo CNJ resolveu que outra juíza, Clarice Maria de Andrade, do Pará, deve ficar dois anos afastada das funções, por ter se recusado a atender, também em 2007, a um pedido para retirar de uma cela do interior do estado, onde estava presa ilegalmente, uma adolescente com 15 anos de idade. Durante mais de vinte dias, a menina foi brutalmente torturada pelos demais presos, até, enfim, ser retirada dali – e, por causa disso, a juíza Clarice recebeu a aposentadoria compulsória em 2010. Achou que era uma injustiça. Recorreu da decisão, foi desculpada pelo Supremo Tribunal Federal  e agora recebe do CNJ a determinação de ficar afastada por dois anos – ou seja, nem aposentada ela acabou sendo. Mas ainda assim não está bom: a juíza Clarice vai recorrer da decisão, pois não aceita nem mesmo esse curto afastamento do cargo.
A Associação dos Magistrados Brasileiros manifestou-se a seu favor, publicamente.  Essa é a realidade. Simplesmente não há,  para os juízes, sentença contrária, pois mesmo quando são condenados, a decisão, na prática, é a favor – e ainda assim eles recorrem. O balanço final é um horror. De 2005 para cá, o CNJ examinou 100 casos de magistrados e todo tipo de acusação: corrupção, principalmente, sob a forma de venda de sentenças, mas também homicídio qualificado, extorsão, peculato, abuso sexual, e por aí afora.  Cerca de 30% dos casos acabaram em absolvição; nos restantes, a punição mais grave foi a aposentadoria compulsória ou, então, a aplicação de penas como “disponibilidade do cargo, censura ou advertência”. Há um ou outro caso, raríssimo, de prisão, é quando o processo corre fora do nível administrativo – e isso é tudo. O contribuinte banca dezenas de milhões com essas aposentadorias. Não há um cálculo exato de quanto, mas é caro, pois em nenhum estado brasileiro a média salarial dos magistrados é inferior a 30 mil reais por mês e em outros estados pagam mais, ela passa dos 50 mil.
É aí, nos ganhos dos juízes – além de procuradores e promotores de justiça --, que está outra aberração em estado integral. A Justiça brasileira gasta cerca de 80 bilhões de reais por ano, 90% dos quais vão direto para a folha de pagamento, que, pelas últimas contas oficiais, sustenta mais de 450.000 funcionários. A qualidade do serviço que presta é bem conhecida por todos. O gasto, porém, é um dos maiores do planeta. Cada um dos 17.500 juízes brasileiros custa em média 46 mil reais por mês, ou mais de meio milhão por ano. Em que outra atividade o custo médio do trabalho chega a alturas parecidas? Para os desembargadores à frente de tribunais de Justiça, essa média passa dos 60 mil reais por mês, e ainda assim estamos longe do pior.
É comum nas Justiças estaduais e na federal, salários mensais de 100 mil reais ou mais. O senador Renan Calheiros, que quer examinar melhor o assunto, cita muito o valor de 170 mil reais, e há casos comprovados de 200 mil reais ou mais. Como pode estar justo uma coisa dessas? Nossos juízes, que se dizem cada vez mais preocupados com a justiça social, parecem não perceber que estão sendo beneficiados por uma das situações de concentração de renda mais espetacular do mundo, resultado da distribuição simples e direta do dinheiro público a uma categoria de funcionários do Estado. Faz sentido, numa sociedade como a do Brasil? Não faz, mas é proibido tocar no assunto. Quando nos lembramos de casos como os das juízas Olga e Clarice, a reação imediata dos defensores do sistema é perguntar: “Mas por que tocar nessas histórias justo agora? O que há por trás disso? A quem interessa o assunto?”. Da mesma maneira, criticar as “dez medidas anticorrupção” tornou-se uma blasfêmia. Espalha-se a ideia de que ações  como a do senador Renan em relação aos salários, e as de outras políticas que pensam numa lei de responsabilidades com sanções mais severas para o abuso da autoridade, não valem nada, porque são feitas com más intenções; o que eles propõem pode até ser correto, mas seus objetivos finais são suspeitos. É tudo uma conspiração para “abafar a Lava Jato”. Não é essa a realidade que os militantes do Judiciário intocável aceitam; querem tudo exatamente como está. O resultado é, e continuará sendo a situação aqui descrita.
Eu, Jc, respondo a pergunta acima, dizendo que o assunto interessa a todos nós que bancamos do nosso bolso (como diz Heródoto Barbeiro) essas anormalidades financeiras, e, no meu entender, pergunto: “Por que não é cumprida no Judiciário e no Legislativo, a lei que determina que ninguém pode ganhar mais do que o salário de um Ministro do STF?”. Esse é o Brasil em que vivemos, cheio de corrupção, impunidade, mordomias e privilégios para algumas milhares de pessoas, enquanto milhões de outras pessoas trabalham, suam as roupas, sofrem e passam dificuldades, para sustentar essa casta de sanguessugas.

Fonte:
Revista “Veja” nº 2.505 – 23/11/2016
Artigo de J. R. Guzzo.
+ resposta a pergunta, questionamento,
e a situação em que vivemos.

Jc.   ( ortsac1331@gmail.com )

São Luís, 30/01/2017

Nenhum comentário: